quinta-feira, 28 de julho de 2011

Acabou a brincadeira: aos 15 anos, atletas tratam futebol como profissão

Ceará Santos Meninos da Vila geração moicanos (Foto: Globoesporte.com)

Funil apertado torna cada vez mais precoce a conduta profissional. Clubes impõem regras, mas evitam cobranças exageradas por resultados tão cedo.

A bola e o futuro. A cada chute certo, o sonho mais próximo. A cada boa exibição, um passo a mais em um caminho estreito e tortuoso. A cada mudança de categoria, a certeza. A cada dia, uma provação. O brincar de bola não cabe mais. Aos 15 anos, o futebol muitas vezes não permite erros para quem sonha com o mundo encantado dos profissionais. Atrás de quem conseguiu tão cedo um lugar entre os melhores clubes do Brasil, a lista de espera é enorme. Quem quiser saber se ainda no começo da adolescência é possível apenas se divertir e, ainda assim, chegar ao sucesso no principal esporte do país, a resposta é simples e objetiva: não.
Reunidos na Copa Brasil Sub-15, competição mais importante da primeira categoria disputada em alto rendimento em gramados brasileiros, 400 jovens nascidos entre 96 e 97 viveram para valer pela primeira vez uma realidade que os espera cada vez mais cedo. Com a chegada ao time de cima se tornando mais precoce ano após ano, os próprios garotos se impõem uma conduta profissional até pouco imaginável nesta idade. Se direitos e deveres são comuns a qualquer grupo social, nas categorias de base eles são vividos com maior intensidade. E muitas vezes sem uma imposição radical dos clubes.
PSTC sub-15 preleção geração moicanos (Foto: Cahê Mota / Globoesporte.com)Desespero dos jogadores do PSTC após eliminação: alto nível de cobrança (Cahê Mota / Globoesporte.com)
Atalho para uma ascensão financeira, seja do próprio atleta ou de toda a família, a bola deixou de ser um presente para lazer e se transformou em instrumento de trabalho para adolescentes. Eles saem cada vez mais jovens de casa, convivem com o assédio de empresários, vislumbram fama e dinheiro, e acabam acreditando que atitudes condizentes com a idade que carregam no registro de nascimento podem fazer o castelo ruir.
- A competitividade é cada vez maior. Não dá muito mais para brincar. Todo mundo quer ser jogador. Poucos chegam – resume Juninho Polidoro, zagueiro do São Paulo.
A competitividade é cada vez maior. Não dá muito mais para brincar. Todo mundo quer ser jogador"
Juninho Polidoro, zagueiro do São Paulo
Quem convive diariamente com este tipo de comportamento busca explicações para a situação:
- A resposta acho que está muito na nossa economia. Na maneira como o Brasil vê o futebol, a formação. Realmente, aos 15 anos eles são adultos e não mais crianças em alguns aspectos. Atrapalha se o clube não olhar bem essa precocidade – aponta Gustavo Fragoso, técnico do Sub-15 do Grêmio.
Apesar do clima de descontração natural do convívio em grupo, a imensa maioria encara a antiga “brincadeira de bola” como se fosse o ofício para o restante da vida.
- Já é uma profissão. É uma profissão porque é muito difícil. Muitos acham que é fácil, mas trabalhamos muito, ficamos exaustos. Nos dedicamos muito – disse o goleiro cruzeirense Jordan.
Assédio de empresários contribui para aumento de cobranças
Lucas São Paulo sub-15 geração moicanos (Foto: Pedro Veríssimo / Globoesporte.com)No São Paulo, nenhum jogador tem empresário.
Postura pouco comum no futebol atual
(Foto: Pedro Veríssimo / Globoesporte.com)
Diante da precocidade dessa postura profissional, o que se pôde perceber na Copa Brasil Sub-15 foi uma preocupação quase que unânime em tornar a cobrança por resultados cada vez menor. Se a competitividade é inerente ao ser humano, a diversão aos 15 anos também deve ser natural e o resultado, uma consequência.
- Ninguém entra em par ou ímpar ou qualquer tipo de jogo para perder. Todos querem ganhar. Mas não adianta entrar em campo bravo, com a cara fechada. É importante ficar mais solto, alegre. Eles só têm a ganhar com isso – analisa Emerson Ballio, técnico do Santos.
O exemplo dado foi refletido na preleção do próprio santista antes da semifinal contra o Cruzeiro. No lugar de aspectos táticos ou padrão de jogo engessado, Ballio trabalhou a parte motivacional dos jovens, pedindo leveza e que se preocupassem apenas com o jogo que estava por vir, e não com tudo que o futebol pode um dia lhes proporcionar.
- Quando fazemos bem o hoje, planejamos o futuro.
Nem sempre, no entanto, é fácil lidar com a forma como o futebol é tratado no mundo globalizado. Minutos antes da mesma preleção, por exemplo, foi entregue no vestiário para determinado jogador uma chuteira novinha em folha de um fornecedor de material esportivo de ponta. O remetente? Não se sabe, mas muito provavelmente empresários que cativam o jovem antes de um contato mais direto.
Este, por sinal, é um outro ponto que faz com que a garotada se veja cada vez mais profissional. Se nos clubes a regra é receber ajuda de custo entre R$ 250,00 e R$ 1 mil nesta categoria (com poucas exceções), a aproximação de agentes é responsável por dar moradia ao restante da família (o clube banca somente o jogador) e solucionar “todo tipo de problema”.
Tirando o São Paulo, onde, por orientação do clube, nenhum atleta conta com empresário, poucos estão “livres” em suas equipes. É o caso, por exemplo, do volante Raphael, de 14 anos, do Santos. Único aprovado em uma peneira com 2.000 jovens, ele se mantém exclusivamente com o pai, que vive em Campinas.
- O empresário ajuda a entrar no clube. Como já consegui isso com meu pai, não preciso mais. Meu pai pode tomar conta disso.
O tema, por sinal, foi motivo de mudanças recentes na Lei Pelé para que os clubes fiquem mais seguros no processo de formação. Com o acesso ao jogador cada vez mais cedo, um novo artigo prevê ressarcimento de 200 vezes o valor investido a partir do momento em que a promessa ingressa nas categorias de base. Contrato profissionais só podem ser registrados a partir dos 16 anos, mas já aos 14 contratos de formação, sem exigências trabalhistas, estão liberado. Estes, inclusive, já garante os 5% sobre qualquer transação futura.
Longe de casa, seriedade é cada vez maior
Ceará, goleiro do Santos, vive longe de casa desde
os 12 anos e aposta na fé para se superar
(Foto: Pedro Veríssimo / Globoesporte.com)
Encarar a base como profissão é reflexo de uma série de obstáculos que o jovem é obrigado a superar cada vez mais novo. Em muitos casos, inclusive, na infância. Nos grandes clubes brasileiros, poucos são os casos de promessas que são frutos de peneiras e vivem em casa com a família. Exemplos como esses são exceção em uma regra de quem deixa suas origens, muitas vezes distantes, para tentar a sorte no mundo da bola.
Foi o que aconteceu com o goleiro Ceará, do Santos. Nascido no estado que carrega no próprio apelido, ele deixou Fortaleza por volta dos 12 anos para cruzar o país e tentar a sorte no Internacional de Porto Alegre. A frustração após dois anos não o fez desistir, até que, com a ajuda de empresários, chegou ao Santos, onde teve destaque na campanha do título nacional Sub-15.
- Temos que plantar para colher no futuro. As coisas não acontecem de uma hora para outra. Vim de Fortaleza com a ajuda de um empresário. Lá não tem muitas oportunidades. Já passei pelo Internacional por dois anos e agora estou feliz no Santos. Moro no alojamento e já me acostumei. Cada coisa que acontece serve para motivar ou fazer desistir. Agora, no Santos, as coisas têm feito com que eu pense em crescer. Saí da dificuldade e quero melhorar de vida. O clube me dá essa condição.
A conduta é a mesma de Lucas Cavalcante. Diferenciado pelo estilo sereno e esclarecido das metas traçadas para carreira, o capitão do São Paulo e da Seleção Brasileira deixa claro que as barreiras superadas ao deixar Brasília não o permitem errar.
Se não tivermos seriedade, nunca vamos chegar lá em cima. Já somos profissionais, só não estamos no time principal"
Lucas, zagueiro do São Paulo
- Chegar até aqui foi muito difícil. E, nessa longa caminhada, eu vi que a coisa não é bem como eu pensava. Não há mais espaço para brincadeiras. Dentro de campo até dá para ser descontraído, ter um “olé”, mas fora tudo mudou de uns anos para cá. Se não tivermos seriedade, nunca vamos chegar lá em cima. Já somos profissionais, só não estamos no time principal - diz o zagueiro.
As situações do cotidiano longe de casa acabam fazendo com que o jovem amadureça cada vez mais precocemente. Até mesmo para superar situações extremas como a saudade da família, algo encarado já com naturalidade pelo pernambucano Vandinho, também do São Paulo, há um ano e meio alojado no CT da base, em Cotia.
- Quando bate a tristeza, é só pegar o celular e ligar para mãe. Se estiver tudo certo, o foco volta para o futebol.
Preocupação para que frustração não deixe traumas
Referência no tratamento dado aos jovens da base, o Tricolor Paulista aloja em Cotia todos os jogadores da categoria Sub-15. No Centro de Treinamento, eles contam com o acompanhamento de assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, além de estudarem em escola particular. O rendimento nos estudos, inclusive, está diretamente ligado à participação em campeonatos e treinos.
Santos sub-15 preleção geração moicanos (Foto: Pedro Veríssimo / Globoesporte.com)Preleção no Santos: cobrança comedida por parte dos treinadores (Pedro Veríssimo / Globoesporte.com)
Ao serem aprovados, todos recebem uma cartilha com os direitos e deveres a serem cumpridos. As normas, por sua vez, não visam somente preparar o novo talento para o futebol. De acordo com o psicólogo Augusto Carvalho, é importante que o adolescente tenha consciência de que o futuro nos gramados é incerto e que é necessário estar preparado para a vida.
- Não há problema em um garoto de 14, 15 anos ser maduro. Lógico que não vai ser como adulto, mas é algo construído em três perguntas básicas: “Quem sou eu?”, “De onde vim?” e “Para onde vou?”. São respostas que favorecem a formação do indivíduo. Eles se cobrarem é importante, desde que tenham o momento certo para descontração, a brincadeira de criança. Para isso, é preciso não exceder nas cobranças. Ninguém vai ser perfeito. O erro faz parte.
Cruzeiro sub-15 preleção geração moicanos (Foto: Cahê Mota / Globoesporte.com)Cruzeirenses também sofrem precocemente
(Foto: Cahê Mota / Globoesporte.com)
Esse tipo de trabalho passa, e muito, pela postura daqueles que são os grandes educadores de quem vive o sonho de se tornar profissional: o treinador. E o são-paulino Menta, vice-campeão da Copa Brasil, deixa claro para seu grupo que o índice de bem-sucedidos no futuro será mínimo.
- A mídia mostra que a remuneração, tudo que envolve o futebol, resolve a vida das pessoas. Mas isso é uma ilusão. Se pegarmos os dados, dos meninos que começam a jogar futebol com 13, 14, 15 anos, menos de 10% chegam ao profissionalismo. Desses, é baixíssimo o percentual de quem fica bem financeiramente. É algo ilusório. E jogamos limpo com eles. Não dá para dizer: “Você vai ser um craque”. Por isso, cobramos estudo e inserção na sociedade como cidadão de bem.
Para evitar que o foco não fique somente no futebol e no alto rendimento, virou moda entre os clubes também determinar parte do dia para a realização de atividades lúdicas. No São Paulo, por exemplo, os atletas tinham diariamente tempo livre para empinar pipas. O objetivo? Fazer com que, mesmo que por pouco tempo, vivam a liberdade de qualquer amigo da mesma idade. Vivam o que são: adolescentes e não ainda jogadores.

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